Leia um trecho - Almanegra (Jodi Meadows)

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ALMANEGRA


INCARNATE Volume 1

ALMANOVA Volume 2

ALMANEGRA Volume 3

INFINITA


JODI MEADOWS

TRILOGIA

INCARNATE VOLUME 2

Tradução Bruna Hartstein

Rio de Janeiro, 2015 1a Edição



Para meu pai, por incentivar meu amor pela fantasia. Sinto muito a sua falta.


ALMANEGRA


1 LEMBRANÇA MINHA VIDA ERA um erro.

Desde que me entendia por gente, sempre quisera saber o porquê de eu ter nascido. Por que, após cinco mil anos com as mesmas almas reencarnando, a minha escorregara por entre as frestas da existência, sobrecarregando os cidadãos de Heart com o peso de tamanha novidade. Ninguém sabia me dizer como isso havia acontecido, não até a noite em que eu entrara inadvertidamente no templo sem portas, prendendo-me lá dentro com uma entidade chamada Janan. —  Um erro — dissera ele. — Você é um erro sem importância. No fundo, eu sempre soube que era uma alma descartável. Do lado de fora do templo, a noite tornara-se um caos. As sílfides queimavam tudo, e os dragões sobrevoavam o céu trovejante cuspindo jatos de ácido. A luz sobrenatural do templo desaparecera. O pai que eu jamais havia conhecido surgiu diante de mim e disse a mesma coisa que Janan. Eu era um experimento que dera errado. Minha vida podia ter começado como um erro, mas eu não deixaria que ela terminasse assim. xx


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A chegada da primavera cobriu Range com um manto verdejante carregado de vida renovada. As árvores floresciam; filhotes de animais espiavam da floresta enquanto os cidadãos de Heart limpavam uma faixa de terra ao norte da cidade, atrás dos gêiseres e buracos de lama borbulhante que desprendiam nuvens de vapor à medida que o inverno afrouxava seu abraço em torno do mundo. Em vez de semearem o solo para novas safras, as pessoas ergueram dúzias de obeliscos pretos, cada qual entalhado com dizeres amorosos, conquistas e o nome de uma almanegra; uma das almas que não reencarnaria, que se perdera na batalha durante o Escurecimento do Templo. Cada cidadão assumiu uma tarefa. As pessoas reuniam pequenas lembranças para colocar ao lado dos obeliscos, vasculhavam os registros no intuito de encontrar vídeos dos amigos que jamais retornariam ou ajudavam na construção do Memorial do Templo. Sam e a conselheira Sine combinaram seus dons, compondo músicas e redigindo lamentos. Eles criaram diferentes melodias e letras para cada almanegra. Eu queria ajudar, mas não conhecia a maioria delas bem o bastante para contribuir. Quando a primavera deu lugar ao verão e o memorial ficou pronto, toda a cidade de Heart se reuniu na avenida Norte, formando duas filas. De dois em dois, passamos pelo Arco Norte. De dois em dois, deixamos os limites da cidade branca. De dois em dois, entramos no Memorial do Templo. As filas se dividiram e cada uma delas seguiu para um dos lados da cerca feita com barras de ferro. As rajadas de vento impregnavam o ar com o aroma das rosas e com um leve cheiro de enxofre de um dos gêiseres mais próximos. Nuvens de vapor pairavam no céu azul. A procissão demorou séculos. Quando todos finalmente chegaram, três fileiras haviam se formado em torno do campo de monumentos altos. O silêncio reinava, exceto pelo farfalhar das folhas e pelos soluços abafados. Ao meu lado, minha melhor amiga, Sarit, apertou minha mão com força e piscou para soltar


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as lágrimas dos cílios escuros. Enquanto esperávamos, nossos vestidos balançavam ao sabor do vento. Um sino repicou no centro do memorial, uma badalada para cada alma perdida. O que acontecia após a morte? Para onde você ia? E o que fazia? O que mais assustava todo mundo era a possibilidade de você simplesmente acabar. Após outro momento de doloroso silêncio, Sine afastou-se do perímetro e pegou um microfone. —  Estamos reunidos aqui hoje para nos lembrarmos daqueles que caíram durante o Escurecimento do Templo. Viemos homenagear suas vidas e mortes, e dar início ao longo processo de convalescência, não apenas de nossos corpos e da cidade, como também de nossas almas… A maioria das pessoas manteve a cabeça baixa, o peso da dor tão evidente na postura abatida que tive medo de que elas desmoronassem. Outros permaneceram estoicamente empertigados, o rosto sem expressão, como se a mente estivesse muito longe dali. No entanto, de vez em quando um ou outro par de olhos se voltava para mim, e eu trocava um sorriso triste com esses meus quase-amigos. Grande parte eram pessoas que eu tinha avisado sobre o risco de morrer durante o Escurecimento do Templo. Não havia muito que dizer em relação a isso, mas essas pes­soas eram gentis comigo e nossos encontros pareciam sempre imbuídos de uma esperança cautelosa. Sine terminou o discurso. De uma em uma, cada almanegra passou, então, a ter suas vidas e lembranças recontadas por alguém. Sam e Sine tocavam a música que tinham composto. Pequenos monitores foram colocados na base de cada obelisco para reproduzir um vídeo daquela determinada alma ou uma cópia da música escrita para ela. Em seguida, passávamos para a próxima almanegra. Ao final do dia, deixamos o memorial da mesma forma como havíamos entrado. Alguns amigos foram para a casa de Sam conosco, mas todos estávamos tão corroídos pela tristeza que a companhia não nos trouxe qualquer alegria. Na manhã seguinte, retornamos ao Memorial do Templo.


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Levamos quatro dias para relembrar as vidas de quase oitenta almas e, enquanto deixávamos o campo de obeliscos negros pela última vez, as pessoas lançavam um olhar de relance para os espaços vazios no fundo, destinados àqueles que não tínhamos certeza de quando haviam morrido. Alguns talvez ainda voltassem. Nas semanas que se seguiram, algumas pessoas tentaram retomar suas vidas como se nada tivesse acontecido, mas havia rumores de gente dormindo na praça do mercado ou destruindo tudo dentro de casa. Já outros passaram, supostamente, semanas inteiras trancafiados em suas residências. Retomei minhas aulas — as que ainda estavam sendo oferecidas —, e tentei encontrar alguma alegria na companhia dos amigos e da música, porém o estranho comportamento da comunidade me deixava sufocada. Ninguém parecia estar conseguindo se recobrar de fato. Com a proximidade do outono, o humor passou da melancolia para um total desconsolo, e a pulsação nas paredes tornou-se insuportável. Nos muros da cidade. Nas paredes da Casa do Conselho. O lento pulsar de vida dentro da pedra fazia com que eu quisesse arrancar a pele do corpo. Não conseguia mais aguentar aquilo. —  Tenho que sair daqui — falei para Sam. — Preciso me afastar.Você vem comigo? —  Para onde você quiser — respondeu ele, e me beijou. Partimos de Heart pouco antes de o verão tornar-se apenas uma lembrança. xx

— Você está muito quieta — comentou Sam ao deixarmos os gêiseres, os buracos de lama, as fumarolas e as árvores cobertas de orvalho para trás. — Está tudo bem. — Oops. Não tínhamos chegado a essa parte do interrogatório ainda. Ele bufou. —  Certo. E no que você está pensando?


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Acelerei o passo para conseguir acompanhar Sam e Não Tão Felpudo Quanto o Pai, o pônei que levava nossa bagagem. Nós o chamávamos só de Felpudo para encurtar. As alças da mochila machucavam meus ombros, embora eu estivesse levando só o essencial — para o caso de nos separarmos por algum motivo —, além do dispositivo que abria uma porta no templo e do meu caderno. Sam passara a chamá-lo de meu diário, ainda que eu não o usasse para anotar os acontecimentos do dia a dia. —  Nada em particular. — Lancei um olhar por cima do ombro para Heart, que dali parecia uma extensão interminável de ondulações e curvas brancas sobre o platô. A gigantesca torre central encontrava-se parcialmente obscurecida pela folhagem. À distância, a cidade parecia um oásis de paz. — Sinto-me melhor por sair de lá. —  Por causa dos muros? — Ele falou como se entendesse, embora eu fosse a única que me sentia incomodada com eles. —  É. — Passei os polegares por baixo das alças da mochila, aliviando um pouco a pressão sobre os ombros. — Você viu Corin ao passarmos pelo posto da guarda? —  Corin? — Sam ergueu uma sobrancelha. — Ele não fez nada. — Não, não fez. — Chutei um galho caído no meio da estrada. Os espinhos do abeto arranharam as pedras do calçamento. — Ele continuou sentado à mesa. Não disse nada. Nem tomou conhecimento da nossa presença. Mal se moveu. —  Ele está de luto — Sam respondeu com delicadeza. — Corin perdeu algumas almas muito queridas para ele. —  Então por que continua indo para o posto da guarda diariamente? —  O que mais ele poderia fazer? —  Não sei. Ficar em casa? Passar um tempo com os amigos? Os olhos de Sam ficaram escuros como a noite e sua voz assumiu a gravi­dade de centenas de vidas. —  Nem sempre a forma como as pessoas lidam com o luto faz sentido. Não posso imaginar como eu ficaria se perdesse você, mas provavelmente pareceria muito estranho para os outros.


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Imaginei que sim. Por que alguém sofreria com a perda de uma almanova como eu? Lembrei de como havia me comportado durante o Escurecimento do Templo. Temendo pela vida de Sam, eu saíra correndo em meio às poças de ácido de dragão, esquivando-me das sílfides e dos raios laser. Sentira como se fosse outra pessoa, capaz de fazer alguma loucura caso não o encontrasse, pois de que forma conseguiria encarar um mundo sem ele? —  Não gosto desse tipo de sofrimento — falei por fim. — E não gosto de como me sinto quando outras pessoas estão de luto. — O que soava como se eu achasse que elas deviam evitar a emoção porque aquilo me incomodava. Não era isso, então o que eu estava tentando dizer? — Depois que os dragões atacaram o mercado, torci para que você melhorasse. Queria fazer o que fosse possível para ajudar, para que você parasse de sofrer, mas não sabia como. Tentei e… Sam assentiu. —  E você se sentiu impotente. —  Não gosto dessa sensação. —  Nem eu. — Ele afastou uma mecha de cabelos pretos dos olhos. — Já me senti assim em relação a você, impotente, incapaz de fazê-la se sentir melhor. — Já? Sam apertou os lábios num sorriso contido. —  Quando nos conhecemos. A fim de me salvar, você queimou as mãos para prender a sílfide no ovo. Sílfide. A simples palavra me fazia estremecer e verificar a mata em busca de sombras sobrenaturais. Lembrava-me com demasiada facilidade do calor infernal atravessando minhas mãos e subindo pelos braços, da pele vermelha e enegrecida coberta de bolhas. — Você tentou ser forte — continuou ele. — E foi forte, mas eu sabia o quanto devia estar doendo. Eu queria acabar com a sua dor, mas não tinha como. Senti-me impotente. —  Mesmo que tivéssemos acabado de nos conhecer? Sam simplesmente sorriu e tocou minha mão; em seguida, trocamos para assuntos mais seguros, tais como a música que ele queria me ensinar e se Sarit


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honraria ou não a ameaça de vir à nossa procura caso não voltássemos para Heart antes do inverno. O final do verão banhava Range em diversos tons de verde. Nuvens riscavam o céu, fechando-se em volta das montanhas como gaze. Um falcão deu um grande mergulho acima de nós, demarcando seu território, e seu piado assustou uma família de doninhas. Elas correram desordenadamente para se esconder nos arbustos, mas ele já estava longe. Quando a noite caiu, armamos uma barraca e estendemos nossos sacos de dormir. Conversamos sobre música enquanto jantávamos e, depois, fomos para fora a fim de nos revezarmos na flauta que Sam tinha levado. Eu gostava de acordar ao lado dele; ver seus cabelos despenteados e seu sorriso sonolento logo pela manhã afastava meus temores e minha tristeza persistentes. Prosseguíamos rápido, e finalmente alcançamos nosso destino: o Chalé da Rosa Lilás. Na última vez que eu o vira, lâminas de gelo pendiam do telhado, e o caminho que serpenteava pela colina estava escorregadio devido à neve. Li havia parado diante da porta, alta, bela e feroz, e me dado uma bússola quebrada para que eu me perdesse e acabasse morta pelas sílfides. Agora, Sam estava comigo ao deixarmos a sombra da floresta e subirmos a colina. A luz do sol aquecia meu rosto e meus braços, e envolvia o chalé num brilho amarronzado, tornando-o tão convidativo que era difícil de reconhecer. Arbustos de rosas erguiam-se em torno das paredes, flores num tom arroxeado já começando a desbotar com a proximidade do outono. Legumes e hortaliças espalhavam-se pelo jardim, podres e meio comidos, uma vez que ninguém estivera lá para colhê-los e armazená-los para o inverno. Passamos uns dois dias limpando o chalé, arrumando nossas coisas nos quartos e organizando a cozinha, sem conversar sobre nada mais complicado do que quem estaria encarregado do café na manhã seguinte. Era bom viver com Sam sem aquelas paredes pulsantes nos cercando. Em nossa terceira noite no Chalé da Rosa Lilás, Sam me pediu para esperar por ele do lado de fora.


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O ar frio me deixava arrepiada, mas esperei no jardim, ao lado de um dos arbustos de rosas. A luz do sol, já baixa, envolvia o chalé e incidia sobre a floresta, capturando-a num jogo de luz e sombras em tons de verde e dourado, com toques de vermelho. A porta bateu e Sam se aproximou com uma cesta nos braços. — Você pode me dar uma ajuda? — pediu. Juntos, estendemos um cobertor sobre a grama para nos sentarmos; os olhos dele brilhavam na penumbra. — Quero lhe dar uma coisa. — Ele tirou uma comprida caixa de madeira de dentro da cesta. A luz fraca que vinha da janela brilhou sobre o verniz. Quando ele havia empacotado aquilo? — Isso é para você. — Você não precisava comprar nada para mim. Tenho tudo de que preciso. Sam sorriu e baixou os olhos para a caixa, as mãos cobrindo os fechos dourados. —  É um presente, como os que Tera e Ash ganharam dos amigos durante a cerimônia de rededicação. Aquela, porém, fora uma ocasião especial para celebrar o amor eterno entre elas. Já hoje era um dia comum, pelo menos até onde eu conseguia me lembrar. Ainda assim, a ideia de ganhar um presente me encheu de alegria, e tentei pegar a caixa dele para olhar. Havia alguma coisa esculpida na madeira, mas não consegui identificar. —  O que é? As mãos de Sam tremiam quando ele destrancou a caixa e levantou a tampa sem fazer ruído algum. A luz incidiu sobre duas hastes de prata, iluminando uma série de teclas e de delicadas espirais gravadas no metal. Era uma flauta, mas de um tipo que eu jamais vira antes. Uma lufada de vento sacudiu as árvores e abafou meu “Oh!”, enquanto Sam tirava a flauta da caixa e a montava. Seus olhos estavam escuros, arregalados de expectativa e algo mais ao estender ambas as mãos com o instrumento apoiado sobre as palmas. —  É linda — murmurei.


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—  Achei que você ia gostar. — A flauta praticamente desaparecia entre as mãos dele, embora parecesse ter o tamanho normal quando pousei os dedos sobre o metal frio. — Pegue — incitou ele. — É para você. —  Por quê? — A pergunta não impediu meus dedos de se fecharem em volta do instrumento e levá-lo aos lábios. Soprei a boquilha ao mesmo tempo em que posicionava os dedos sobre as teclas. Sam se aproximou um pouco mais, aquecendo-me com o calor de seu corpo. —  Aqui. — Ele afastou meu polegar direito, posicionando-o corretamente. — Agora o queixo. — Ergueu meu rosto um tiquinho, os dedos demorando-se sobre minha pele. Nossos olhos se encontraram, ambos subitamente cientes da outra mão dele em minhas costelas, ajeitando minha postura de maneira inconsciente. —  Melhor? — Soprei de novo. Ele observou minha boca e anuiu. — Toque para mim. Tocar o quê? Ele não trouxera nenhuma partitura. Ainda assim, enquanto a luz do sol começava a enfraquecer, fazendo com que as rosas arroxeadas adquirissem um tom mais próximo do nanquim, e incidia sobre os cumes das montanhas cobertos por uma neve prematura, toquei uma nota baixa e demorada que reverberou pela clareira onde ficava o chalé como um chamado. A nota criou uma aconchegante bolha aquecida ao nosso redor. Ela enveredou pelos ramos de hera, prendeu-se aos arbustos de rosas e abriu caminho em direção às montanhas que se erguiam como paredes distantes. Inspirei para recuperar o fôlego enquanto meus dedos subiam meio-tom. A flauta prolongou o som. Ela se encaixava a mim com perfeição, como se eu tivesse recuperado uma antiga parte do meu corpo. Minhas mãos, minha boca e meus pulmões conheciam aquela flauta; eu sabia que ela faria o que eu lhe pedisse, e mais. Continuei subindo os tons até formar um padrão, tão doce e evocativo quanto o som da flauta. A melodia tomou corpo e alçou voo de maneira firme


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e determinada. A música foi me preenchendo até eu ter a sensação de que ia explodir. Quando parei de tocar, Sam se inclinou em minha direção com um sorriso satisfeito estampado nos lábios. —  Ela combina com você. —  Ela é perfeita! — Acariciei a prata, sentindo o relevo dos desenhos sob as pontas dos dedos. Pareciam ramos de hera, ou alguma outra coisa delicada e espiralada. — Foi você quem fez? —  Só uma parte. O grosso do trabalho quem fez foi um amigo. De que outra forma eu conseguiria escondê-la de você? O metal parecia quente entre meus dedos. Eu não conseguia tirar os olhos do modo como a flauta se encaixava em minhas mãos. Ela era perfeita. —  Queria poder tocá-la o tempo inteiro. —  Ótimo. — Sam abriu um sorriso de orelha a orelha. — Porque é o que você vai fazer. — Sua voz assumiu um tom conspiratório. — Escrevi alguns duetos para a gente. Meu coração deu um salto. — Jura? — Quero guardar este momento para sempre, o modo como você está sorrindo agora. —  Então faça isso. — Soltei a flauta no colo e passei as mãos diante da boca, fingindo agarrar meu sorriso como se ele fosse um chumaço de nuvens ou de lã de carneiro. — Aqui. — Botei meu sorriso imaginário nas mãos dele. — Isso é para você. Sam levou as mãos fechadas ao peito e riu. —  Isso é tudo o que eu sempre quis. — Tenho mais, sempre que você quiser. — Tudo o que eu preciso fazer é te dar novos instrumentos? Dei de ombros. —  Podemos encontrar outras coisas que valham um sorriso. Ele envolveu meu rosto entre as mãos e me beijou.


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—  Ana, eu… — O modo como a voz dele tornou-se mais suave e grave de emoção me fez estremecer. Ele se afastou. — Vou pegar um casaco para você. O que quer que Sam pretendesse dizer antes foi engolido pelo ar frio da noite. —  Não precisa. Sabe o que ajudaria a me aquecer? Se você pegasse a outra flauta e algumas partituras. —  Já quer começar? — Ele ergueu uma sobrancelha. — Você não pode me dar uma flauta novinha em folha e esperar que eu a bote de lado. — Abracei o instrumento de encontro ao peito. —  Então espere um pouco que eu já volto. — Sam me beijou de novo, se levantou e desapareceu chalé adentro, acendendo a luz da sala assim que a porta se fechou. Boa ideia, desse jeito conseguiríamos ler as partituras. Sozinha, exceto pelas árvores, rosas e alguns poucos pássaros que começavam a voltar para seus ninhos, ergui a flauta e toquei uma melodia simples. Em algum lugar na mata, um pássaro repetiu algumas notas. Sorri e toquei de novo, e ele me acompanhou. Estranho, eu não conseguia identificar o pássaro. Não parecia um picanço nem um tordo. Um sabiá? Não, sua voz soava como se fosse de outro mundo. Enquanto vasculhava a escuridão, toquei alguns acordes do meu minueto — o que eu tinha escrito não muito antes do Escurecimento do Templo —, e o pássaro… ou o que quer que fosse… cantou de volta. Não era um pássaro. —  O que você está fazendo? — perguntou Sam ao retornar, carregando nos braços um livro de partituras, o suporte para apoiá-lo e sua própria flauta. — Tem alguma coisa na mata. — Eu não conseguia enxergar. A luz que se derramava pela porta iluminava só até a metade da trilha, deixando o grupo de árvores fora de seu alcance. As rosas estremeceram sob a brisa gelada, e um gemido longo e pesaroso ecoou pela mata. Meu estômago se contraiu. Eu conhecia aquele som. —  Sílfide. — A luz produzia sombras espessas sobre o rosto de Sam. — Uma sílfide? Aqui? —  Não parecia uma sílfide antes. Achei que fosse um pássaro imitando o que eu tocava.


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Uma expressão de choque perpassou o rosto de Sam enquanto ele apertava os olhos para tentar enxergar através da escuridão. —  Elas nunca penetram tanto no território de Range. Nem… imitam a gente. Passei a língua nos lábios e toquei mais quatro notas; a repetição soou mais próxima. Uma sombra tremulou ligeiramente atrás do alcance da luz. Logo em seguida, outra à esquerda, e uma terceira na floresta. Elas eram muitas, talvez tantas quanto na noite em que haviam me perseguido até eu cair de um penhasco no lago Rangedge. As sílfides queimavam, fediam a fogo e cinzas e não possuíam substância. O conhecimento acumulado a respeito delas era complicado e contraditório. Alguns diziam que elas eram sombras que haviam adquirido uma tenebrosa meia-vida graças aos gases e à caldeira que havia debaixo de Range. Já os céticos afirmavam que as sílfides eram apenas outra das espécies dominantes do planeta, tal como os dragões, os centauros e os trolls; as pessoas deviam tomar cuidado com elas, mas não atribuir-lhes lendas e poderes especiais. O que quer que fossem, eu já tivera a minha cota de experiência com elas por uma vida inteira. —  Sam. — Mal reconheci minha voz, tão distante da tempestade de medo que crescia dentro de mim. — Pegue todas as armadilhas que encontrar. Várias outras sílfides se juntaram ao coro de notas, entoando-as como se elas fossem um pequeno verso musical. O som ficou mais alto, mais próximo e, de repente, parou. Uma sensação de expectativa pesou no ar. Segundos depois, uma delas assobiou uma escala inteira. Sam tocou meu cotovelo. — Vá para dentro de casa. As paredes são reforçadas. — Reforçadas. Mas não à prova de sílfides. — Ergui a flauta. — Acho que… — Minha respiração sibilou sobre a boquilha, o que fez todas elas se retesarem e se aproximarem um pouco mais. Recuei até minha saia ficar presa numa roseira, os espinhos me pinicando através do tecido. — Acho que a


música irá mantê-las distraídas. Pegue os ovos. Prepare as armadilhas. Se alguma delas atacar, eu entro. Só esperava ser rápida o bastante para alcançar a porta antes que elas me queimassem viva. — Tentarei ser rápido. — Sam desapareceu chalé adentro. O calor me envolvia por todos os lados à medida que elas se aproximavam. Com o coração martelando no peito, comecei a tocar.


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